Vizinho russo já foi a terceira maior potência nuclear do planeta, mas trocou seu arsenal por garantias de segurança e assistência militar após o fim da União Soviética
Durante a Guerra Fria, a terceira maior potência nuclear do planeta não era o Reino Unido, a França ou a China, mas sim a Ucrânia. E com o colapso da União Soviética (URSS) em 1991, a nação recém-independente herdaria cerca de 3.000 armas nucleares deixadas por Moscou em seu território.
Três décadas depois, a Ucrânia está totalmente desnuclearizada. E o tema volta à tona agora que o país se encontra em uma posição delicada após a invasão territorial comandada pelo Kremlin, que ameaça reagir a qualquer tentativa de interferência das potências da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) no confronto.
Mas o que aconteceu nas últimas décadas para que a Ucrânia passasse de uma das maiores potências nucleares do mundo para um país invadido por seu maior vizinho?
Além disso, a presença dessas armas em território ucraniano teria ajudado a evitar a invasão? Há um risco de conflito nuclear na atual guerra? E por fim, a Ucrânia tem tentado possuir armamento nuclear, como acusa a Rússia?
Nos anos 1990, a Ucrânia decidiu abrir mão das armas nucleares deixadas em seu território em troca de segurança e reconhecimento como país independente. Tudo foi acordado por meio do Memorando de Budapeste, um acordo assinado entre o governo ucraniano, a Rússia, o Reino Unido e os Estados Unidos após o fim da URSS.
No entendimento firmado em 1994 na capital da Hungria, a Ucrânia se comprometia a aderir ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) e a devolver para Moscou as ogivas deixadas em seu território.
"Com o fim da URSS, parte do estoque de armas nucleares soviético foi deixada para trás em diversos países do Leste Europeu, e havia uma preocupação do Ocidente de que elas poderiam ser extraviadas ou mal utilizadas, trazendo risco para a Europa", conta Vicente Ferraro Jr., cientista político e pesquisador do Laboratório de Estudos da Ásia da Universidade de São Paulo (USP).
Em troca da desnuclearização de Kiev, os governos da Rússia, dos EUA e do Reino Unido se comprometeram a "respeitar a independência, a soberania e as fronteiras existentes da Ucrânia" e a "abster-se da ameaça ou do uso da força" contra o país.
As prerrogativas eram muito importantes para o governo ucraniano naquele momento, já que o país só conquistou sua independência definitiva em 1991 e ainda lutava por reconhecimento internacional após a era soviética.
Em 1996, Kiev já havia devolvido todas as armas soviéticas deixadas em seu território. O memorando também foi assinado por Belarus e Cazaquistão, com as mesmas condições conferidas ao governo de Kiev.
A Ucrânia alega que a Rússia descumpriu o Memorando pela primeira vez em 2014, quando invadiu e anexou a Crimeia, região no leste do país onde fica a base naval russa de Sebastopol e a frota do mar Negro.
O governo ucraniano afirma ainda que as condições do entendimento também foram desrespeitadas quando o Kremlin passou a apoiar os grupos separatistas que comandam rebeliões nas províncias de Donetsk e Luhansk, na fronteira com a Rússia. O conflito na região já deixou mais de 14 mil mortos.
Desde que a ameaça de uma invasão russa ao território ucraniano se concretizou em 2022, o governo do presidente Volodymyr Zelensky decidiu invocar o Memorando de Budapeste mais uma vez.
"A Ucrânia recebeu garantias de segurança após abandonar o terceiro maior arsenal nuclear do mundo. Não temos mais essas armas, mas também não temos segurança", disse Zelensky em um discurso em 19/02. "Desde 2014, a Ucrânia tentou por três vezes convocar consultas com os Estados signatários do Memorando de Budapeste, mas sem sucesso. Hoje, a Ucrânia fará isso pela quarta vez. Por uma última vez."
Não houve tempo para qualquer consulta, e a invasão foi concretizada em 24/02, com ataques à infraestrutura militar ucraniana em todo o país e envio de comboios russos chegando de todas as direções.
Após o discurso do líder ucraniano sobre o Memorando, o presidente russo Vladimir Putin ainda passou a usar as palavras de Zelensky para justificar suas ações.
Putin afirmou em um discurso em Moscou na segunda-feira (21) que a Ucrânia estava abandoando o pacto com intenções de desenvolver um arsenal nuclear com o auxílio dos EUA. Segundo ele, o país planejava ações agressivas e, dessa forma, representava um risco muito maior à população russa.
"As declarações de Putin são totalmente falsas. Não há interesse da parte dos EUA de armar ou ver a Ucrânia armada com armas nucleares", diz Alexander Lanoszka, professor de Relações Internacionais da Universidade de Waterloo (Canadá) e especialista em segurança nuclear.
Antes mesmo da assinatura do Memorando em Budapeste, membros da elite política ucraniana e especialistas em política internacional já previam a possibilidade de desrespeito ao acordo por parte de algum dos signatários.
Volodymyr Tolubko, um ex-comandante militar que foi eleito para o Parlamento ucraniano, argumentou em uma sessão do Legislativa em 1992 que a ideia da Ucrânia se desnuclearizar totalmente em troca da promessa de segurança era "romântica e prematura".
Segundo ele, o país deveria manter pelo menos algumas das ogivas soviéticas, que serviriam para "dissuadir qualquer agressor".
Com a mais recente invasão russa, o debate voltou à tona, com membros do governo e analistas políticos argumentando que a Ucrânia poderia ter evitado a incursão caso tivesse armas nucleares à sua disposição.
Ferraro Jr., da USP, explica que, de fato, há uma crença entre algumas nações de que um arsenal nuclear pode ser útil para dissuadir ataques estrangeiros.
"Há um conceito defendido por alguns na área de Relações Internacionais chamado dissuasão nuclear ou paz nuclear. Segundo ele, países com um arsenal nuclear correm menos riscos, não porque podem realmente utilizar suas armas, mas porque as utilizam como garantia ou ameaça contra qualquer tentativa de ataque", diz. "Os adeptos dessas ideias costumam usar o exemplo da Guerra Fria para basear seus argumentos, pois naquele momento EUA e Rússia nunca tiveram um conflito direto e pararam nas ameaças".
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil advertem, no entanto, que a presença de armas nucleares está longe de representar uma garantia ou sensação de paz.
"Conflitos que envolvem potências nucleares sempre são mais perigosos e tensos, como é o caso do embate entre Paquistão e Índia que se arrasta por anos", diz Ferraro Jr.
Para Lanoszka, da Universidade de Waterloo, os argumentos usados por parte da elite ucraniana não fazem sentido porque Kiev nunca teve controle das armas instaladas em seu território após a Segunda Guerra Mundial.
"A Ucrânia tinha apenas o controle físico dessas armas, mas não operacional. Eles não tinham os códigos de acesso e os detalhes críticos para operá-las, algo que, na verdade, poderia tornar o seu uso ainda mais perigoso", diz o pesquisador.
Andrew Futter, professor de política internacional da Universidade de Leicester (Reino Unido), também ressalta que a manutenção do arsenal em Kiev poderia significar riscos futuros.
"Embora a Ucrânia tenha hoje uma indústria de energia nuclear, transformá-la em um programa de armas nucleares incorreria em custos políticos e financeiros significativos", afirma.
Ainda que Kiev tenha se desnuclearizado totalmente, paira sobre a Europa um temor de confronto nuclear desde que as forças russas invadiram as fronteiras ucranianas.
Putin já deixou explícito em seus discursos que responderá com agressividade caso algum dos membros da Otan, aliança militar encabeçada pelos Estados Unidos e pelas maiores potências da Europa, decida interferir no confronto a favor da Ucrânia. Além disso, ele colocou a força nuclear estratégia da Rússia em "alerta especial", o nível mais alto.
Em conversa com oficiais militares, o presidente russo afirmou que potências globais tomaram "ações hostis" em relação à Rússia e impuseram "sanções ilegítimas". A mudança para o status de alerta provavelmente facilita o lançamento de armas mais rapidamente, mas isso não significa que haja uma intenção real de usá-las.
Mas segundo especialistas em segurança e política nuclear, não há motivos para pânico no momento. O secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, já afirmou que não tem tropas na Ucrânia nem planos de enviá-las ao país. Para ele, a ordem de Putin sobre o armamento nuclear é "perigosa" e "irresponsável". Uma posição semelhante foi manifestada pelo governo americano e pela União Europeia.
Ao que parece até o momento, a aliança militar só consideraria uma intervenção militar no caso de uma ameaça russa contra algum de seus Estados-membros. De acordo com o artigo 5º da Otan, a organização é obrigada a defender qualquer Estado membro que seja atacado.
A Ucrânia não é membro da Otan, embora tenha dito que quer se juntar à aliança militar — algo que Putin está determinado a impedir e usa como uma de suas justificativas para a ação militar no território ucraniano.
"Putin disse que qualquer interferência externa no conflito, ou qualquer ação contra a Rússia, gerariam uma resposta forte. Nas entrelinhas, há uma ameaça nuclear", diz Lanoszka. "Mas há um interesse comum de todas as partes de restringir esse conflito à Ucrânia. Então, eu ficaria muito surpreso se armas nucleares fossem usadas neste momento".
Segundo Ferraro Jr., mesmo no caso de um ataque russo contra outras ex-repúblicas soviéticas que hoje fazem parte da Otan, como a Estônia, Letônia e Lituânia, é possível que as duas partes prefiram minimizar os riscos. "Assim como o Ocidente e a Otan evitam conflito direto na Ucrânia, Rússia também evitaria um confronto no restante do Leste Europeu", afirma.
Para Futter, também não há qualquer indicação de que Moscou pretenda usar suas armas nucleares contra a Ucrânia. "Não vejo nenhuma razão pela qual Moscou usaria armas nucleares contra a Ucrânia. Não apenas porque qualquer material radioativo tão perto de sua fronteira pode ser perigoso, mas também porque eles provavelmente não querem destruir o país e a população ucraniana, já que seu plano parece ser incorporar o território à Rússia."
Por fim, Larlecianne Piccolli, pesquisadora especializa em armas estratégicas e política de segurança e defesa da Rússia e diretora do Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia (Isape), escreveu em seu perfil no Twitter que a elevação do alerta feita por Putin visa principalmente intimidar a Ucrânia e forçá-la à mesa de negociações, algo que já está em andamento. Mas os termos em negociação ainda não foram divulgados oficialmente.