Era apenas mais uma manhã para o estudante Carlos Samuel Galvão, de 20 anos, que estava a caminho da aula de música
Chegando no ponto de ônibus, o jovem foi vítima de uma bala perdida que, por pouco, não atingiu seu corpo: ele foi protegido do tiro por uma coisa que já salvou sua vida no passado: a música.
Como de costume, Samuel levava seu violino nas costas quando ficou cercado por uma troca de tiros entre bandidos e policiais da cidade do Rio de Janeiro. Um dos disparos acertou o instrumento musical. “O violino serviu como um escudo e salvou minha vida“, diz.
“Se não estivesse com o violino, eu seria só mais um nas estatísticas. Ia passar na reportagem que houve um ataque de criminosos fortemente armados, a mesma história de sempre, por um ou dois dias falariam sobre o assunto e depois iriam abafar o caso. Não ia acontecer nada, como sempre”, afirmou o jovem à BBC News Brasil.
Como boa parte dos jovens que vivem em comunidades carentes, onde a milícia e o tráfico são bastante influentes, Samuel sabe da trágica estatística de mortes de pessoas negras no país. “Eu conhecia várias pessoas negras que foram vítimas de balas perdidas ou ‘achadas’“, diz.
Para o estudante, a música se tornou fundamental para que ele e outros jovens fugissem do cenário de violência cada vez mais cruel e constante na periferia carioca.
“Costumo dizer que foi fundamental para a minha trajetória. Antes da música, eu não sabia o que fazer. Sabia que ia crescer, arrumar emprego e ser mais um trabalhando em uma área que não gosta. Mas quando me encantei pelo violino, descobri que ia ser nele que eu ia trabalhar com o que gosto”, afirmou ele, que mora no Morro dos Macacos, em Vila Isabel (Rio).
Ele começou a estudar o violino graças à ONG “Ação Social pela Música do Brasil”, que chegou à comunidade há alguns anos.
A entidade atua para prover educação musical para crianças e adolescentes que vivem em regiões carentes.
“Uma tia me avisou do projeto e eu fui com minha mãe. Chegando lá, escolhi aprender violino, porque sempre achei um instrumento muito bonito, por causa do filme Titanic. Falei: ‘pô, vou aprender a tocar esse aqui'”, disse Samuel, que começou a tocar com 14 anos e foi convidado recentemente a fazer parte da Orquestra Sinfônica Jovem do Rio de Janeiro para os músicos que se destacam.
Até aqui, o jovem tem ganhado cada vez mais relevância em sua área de atuação: já viajou para diversas regiões do Brasil, além de ter conhecido Nova York, nos Estados Unidos, para participar de uma apresentação com a orquestra.
Na manhã do dia 20 de agosto, Samuel se dirigia para mais uma aula de violino. Ao acordar, já ouvia barulho de tiros na comunidade.
De acordo com a Polícia Militar do Rio de Janeiro e a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), houve um ataque a tiros na sede da UPP no Morro dos Macacos.
“Os suspeitos fugiram e, após estabilizado o terreno, foram encontrados um estojo calibre 9mm, munições 5.56, um rádio comunicador. O material apreendido foi encaminhado à 20ºDP, onde a ocorrência foi registrada”, informou a polícia.
Com aula marcada para 9h, Samuel temia que os tiros não parassem nas horas seguintes. “O professor falou que eu poderia chegar a qualquer hora, quando eu conseguisse sair de casa”, contou. “É normal deixar de sair de casa por causa de tiroteio. Querendo ou não, a gente meio que se acostumou com a violência. A verdade é essa. Acostumados ou não, isso é parte da nossa realidade”, lamentou.
Às 9h20, os tiros cessaram. “Liguei pro professor e falei que chegaria rapidinho. Ele me disse para ir com calma e tranquilo”. Foi aí que o rapaz desceu até o ponto de ônibus, ‘munido’ de seu violino alçado nas costas. “Sempre carreguei nas costas para ficar com as mãos livres”, disse.
Prestes a chegar no ponto, Samuel ouviu o tiroteio recomeçar. “Estava muito forte, parecia que estavam usando vários tipos de armas e granadas. Todo mundo se abaixou”, relatou.
Não houve tempo para ele se abaixar também. “Foi tudo muito rápido. Eu parei e virei pro lado, dei um passo pra frente e ouvi um tiro muito estrondoso atrás de mim. Não deu tempo de me abaixar ou correr. Na hora, pensei: bateu um tiro no prédio”.
Aparentemente, ao olhar para trás, ele observou que nenhum prédio próximo a ele havia sido atingido. “O pessoal começou a correr em minha direção para me socorrer. Eu comecei a ficar desesperado, achei que eu fui baleado e não senti porque estava com o sangue quente. Tirei a camisa e vi que não tinha acontecido nada comigo”, disse.
Foi aí que, ao olhar o estojo do violino, encontrou o buraco do tiro. “Eu abri (o estojo) e vi o violino todo quebrado, a bala estava lá dentro. Foi um desespero absurdo”.
Desespero porque se ele não tivesse dado um passo para frente no momento do tiroteio ou se não estivesse com o violino nas costas, Samuel acredita que teria sido atingido pela bala.
“O tiro poderia ter acertado minha costela. Eu poderia ter morrido. Foi desesperador. Num segundo você tá vivo e no outro pode estar morto. Passa um filme na cabeça. Você fica ‘piradão’ com isso”, desabafou o jovem.
Depois da situação angustiante, veio outra preocupação: como consertar o violino atingido pela bala. O instrumento era emprestado (pertence ao projeto social), pois o dele estava em manutenção.
“Eu fiquei desesperado porque o violino não era meu, muito menos do projeto. Na semana anterior, eu tinha uma prova na orquestra para avaliar se o aluno estava evoluindo e, como o violino que eu usava tinha soltado uma peça, precisei pegar um outro emprestado”, diz.
“Esse violino que eu estava no dia do tiroteio era de um luthier (especialista em instrumentos de corda), que me emprestou por causa da prova que eu tinha. Eu fiz a prova na orquestra e passei. Naquele dia (20 de agosto), eu iria para a aula e depois devolveria o violino”, contou o rapaz.
Sem condições para arcar com os cursos de um violino novo, Samuel criou uma vaquinha para arrecadar R$ 8 mil, suficiente para pagar o instrumento atingido pela bala perdida (avaliado em R$ 4 mil), além de auxiliá-lo com a manutenção do instrumento e também para apoiar despesas futuras do jovem com a música.
Na manhã desta sexta-feira (17), a campanha já havia batido a meta (R$ 8,2 mil através de 64 doações).
Agora, tudo que ele deseja é continuar perseverando na música. Em breve, ele deve concluir o ensino médio, “por não ter dado atenção ao colégio no passado”, e já tem planos para ingressar na universidade. “Quero me tornar músico profissional e viver disso”, completou.