Uma década depois de entrar para o mundo do crack, Valdemir Bispo de Jesus, 38 anos, vive a grande chance de mudar de vida na UnB
Uma década depois de entrar para o mundo do crack, Valdemir Bispo de Jesus, 38 anos, tem uma grande chance de mudar de vida por meio da educação. Leitor ávido e escritor de diversos poemas, ele contou com a ajuda de profissionais de uma casa de passagem em Taguatinga para se inscrever e passar de primeira no vestibular da Universidade de Brasília (UnB).
Natural de Itaberaba, na Bahia, ele passou a morar na Expansão do Setor O, em Ceilândia Norte, ainda aos 12 anos, com os pais e quatro irmãos. Desde então, diz, já gostava de escrever. “Faço isso desde que me entendo por gente. Tanto que no meu primeiro trabalho, aos 17 anos, como mensageiro no Banco Central, encontrei uma pessoa que, junto a mim, lançou um livro. Fui um dos percussores do E-Book”, lembra.
Valdemir passou a conhecer pessoalmente grandes nomes da literatura brasiliense e a divulgar vários poemas de autoria própria até que, por volta de 2012, conheceu o crack. “Passei por esse pesadelo”, diz.
Confira abaixo o relato de Bispo sobre a dependência:
Ele acabou saindo de casa para evitar mais conflitos com a família. Chegou a ir para Goiânia (GO) tentando fugir da droga, mas afirma que todo lugar que ia, acabava se encontrando com o crack. “Onde quer que você vá, você encontra. É uma epidemia. Eu ficava ziguezagueando, mas sempre evitei morar na rua mesmo. Nesses anos todos, devo ter ficado na mendicância mesmo por um mês apenas”, explica.
Foram nessas idas e vindas que o futuro universitário acabou conhecendo o Instituto Inclusão, responsável por gerir casas de passagem mantidas pela Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes). Ele passou por Ceilândia Norte, Sul, São Sebastião até chegar em Taguatinga Norte, no fim de 2021. “Aqui, o espaço físico é muito bom, os profissionais, principalmente da equipe técnica, são excelentes. Eu senti o calor humano ao chegar aqui”, diz.
A ideia de prestar vestibular sempre existiu, mas só amadureceu no fim de 2021, quando Valdemir chegou à casa de passagem do Instituto Inclusão na Samdu Norte, em Taguatinga.
Ezequiel Ruiz, 27, é o psicólogo que fez o primeiro acompanhamento do baiano dentro da casa e organizou tudo para que ele pudesse fazer a prova. “Eu sabia que o Valdemir tinha esse sonho de fazer o ensino superior e percebi o gosto pela leitura”, comenta.
Ele foi acompanhado do paciente algumas vezes até o campus de Ceilândia para participar de um estudo até que um dia ficou decidido que fariam a inscrição. “Foi no último dia. Tínhamos apenas algumas horas. Resolvemos o curso na hora e deu certo”, lembra.
O dia da prova não foi menos agoniante, conforme detalha Aline Ferreira, 38, outra psicóloga que acompanha Valdemir. A profissional conta que ele estava ajudando na limpeza do banheiro até 45 minutos antes da prova. “Eu cheguei correndo lembrando que tinha que ir embora logo. Ele até perguntou se daria tempo, mas deu”, comemora.
Todo o esforço valeu a pena. A aprovação para Língua Portuguesa e Respectivas Literaturas veio.
Confira a fala de Valdemir sobre a expectativa:
Para o início das aulas, os psicólogos dele pedem ajuda de um psicoterapeuta que possa acompanhá-lo voluntariamente. Quem puder ajudar doando um celular ou notebook para que Valdemir acompanhe as aulas, pode procurar a casa na QNE 24, Casa 05 – Taguatinga Norte/Samdu Norte.
Ainda lutando contra o fim da dependência, Valdemir tem um jeito próprio de expressar sentimentos. Seja em momentos difíceis ou mais alegres, ele prefere escrever em vez de falar.
São dezenas de textos escritos a mão e cuidadosamente guardados pelos colaboradores do local. Neles, o agora estudante fala sobre a drogadição, as estrelas e qualquer outro tipo de assunto.
A secretária de Desenvolvimento Social, Mayara Noronha Rocha, compareceu à casa de passagem e teve a oportunidade de conversar com Valdemir. Por mais de meia hora eles trocaram ideias e reforçaram a importância de um trabalho individualizado na recuperação de dependentes químicos.
Conforme destaca a secretária, as casas de passagem fazem parte de uma política de retirada das pessoas da drogadição e ao mesmo tempo um começo de inserção novamente na sociedade. “Qual a dificuldade que enfrentamos? Muita gente quer ajudar, mas não aceita uma casa de perto de suas residências”, explica.
Segundo ela, o local sempre é escolhido levando em conta uma série de fatores. “É por causa de um estudo feito. A população de rua está concentrada onde o poder econômico está. Então os centros das cidades sempre têm maior possibilidade de eles encontrarem doação, reciclagem e drogas. Não adianta colocar essa casa longe, pois essas pessoas não vão se deslocar até lá”, afirma.
Mayara espera que casos como este, mostrem que não há motivo para se ter preconceito contra os frequentadores destes locais. “Muita gente tem medo de ter uma casa nas proximidades, mas é necessário falar que existem várias regras a serem cumpridas”.