Maior pesquisa já publicada mostra, entre os pacientes internados na UTI, a mortalidade geral no país foi foi de 55% e, no Centro-Oeste, 51%
Médicos fazem treinamento no hospital de campanha para tratamento de covid-19 do Complexo Esportivo do Ibirapuera. (Foto: Rovena Rosa / Agência Brasil)
A mortalidade de pacientes brasileiros internados com Covid-19 é mais alta em comparação com outros países e tem sido agravada pelas disparidades regionais de leitos e de recursos existentes no sistema de saúde.
A conclusão é de um estudo recém publicado na revista científica The Lancet Respiratory Medicine, que analisou 254.288 mil pacientes, com idade média de 60 aos, internados em hospitais públicos e privados nos seis primeiros meses da pandemia (entre fevereiro e agosto). É a maior pesquisa do gênero já publicada no mundo.
No Norte e no Centro-Oeste, por exemplo, 17% dos pacientes foram intubados fora da UTI em comparação com 8% no Sul e 13% no Sudeste.
“É um sinal de sobrecarga. Ou não tinha mais leito de UTI ou não conseguiram transferir o paciente. Quando precisa de ventilação invasiva, é um doente muito grave e é preciso ter um ambiente monitorado, uma equipe capacitada”, diz o médico intensivista e epidemiologista Otavio Ranzani, pesquisador da USP e um dos autores do estudo.
Das internações analisadas, 47% dos pacientes tinham idade inferior a 60 anos, 16% não apresentavam comorbidades e 72% receberam algum suporte respiratório (invasivo ou não invasivo) durante a internação. A pesquisa não diferenciou pacientes das redes pública e privada de saúde.
A mortalidade geral foi de 38% e aumentou conforme o avanço da idade (de 12% , entre 20 e 30 anos, para 66% para os acima de 80 anos) e das complicações. Nos doentes com menos de 60 anos, a taxa média de mortalidade ficou em 20%.
A proporção geral de mortes hospitalares foi maior entre pacientes analfabetos (63%), negros (43%) e indígenas (42%). A mortalidade também foi mais frequente em pacientes internados na UTI (59%) do que naqueles assistidos na enfermaria (29%). Entre os intubados, a mortalidade foi de 80% contra 24% entre os que receberam ventilação não invasiva.
As complicações mais associadas às mortes foram baixo nível de oxigênio no sangue (45%), dificuldade respiratória (43%) ou dispneia (41%).
As disparidades regionais também são marcantes. No Norte e no Nordeste, os índices de mortes hospitalares foram de 50% e 48%, enquanto no Centro-Oeste, no Sudeste e no Sul, de 35%, 34% e 31%, respectivamente.
Entre os pacientes internados na UTI, a mortalidade geral foi de 55%. Norte e Nordeste registraram 79% e 66%, respectivamente, enquanto Centro-Oeste, Sudeste e Sul, 51%, 49% e 53%.
Embora com diferentes metodologias, estudos em outros países apontam taxas de mortes menores. Na Alemanha, por exemplo, 17% dos pacientes receberam ventilação mecânica (não invasiva ou invasiva). A mortalidade hospitalar foi de 22% no geral e 5% para pacientes com menos de 60 anos. No Irã, a mortalidade geral foi de 24% e 42% entre aqueles acima de 65 anos
“Na Inglaterra, a mortalidade no início da pandemia foi parecida com a nossa, mas os pacientes eram mais velhos e o momento era de pico. No Brasil, estamos sob pressão sempre”, diz Ranzani. Os pacientes analisados no estudo brasileiro são, em média, dez anos mais jovens do que os pesquisados nas séries europeias.
De acordo com a pesquisa, apesar do alto número absoluto de hospitais e leitos de UTI no Brasil em comparação com alguns países da Europa ocidental, a distribuição regional heterogênea desses recursos é uma barreira considerável para o acesso equitativo aos cuidados de saúde.
No início da pandemia, o Sudeste tinha cerca de duas vezes mais leitos de UTI por pessoa do que o Norte, por exemplo. Além disso, os leitos de UTI estavam concentrados nas capitais e regiões costeiras, o que gerou uma barreira adicional ao acesso aos serviços de saúde, especialmente após a expansão do Covid-19 para áreas do interior.
De acordo com Ranzani, apesar de o Norte e o Nordeste terem populações mais jovens, os desfechos foram piores, com mais doentes necessitando de internação em UTI e ventilação invasiva. Entre os pacientes intubados com menos de 60 anos, a mortalidade foi de 77% no Nordeste em comparação com 55% no Sul.
Segundo o estudo, muita atenção foi dedicada aos recursos disponíveis, como leitos de UTI e ventiladores, e pouca atenção foi dada ao treinamento de profissionais de saúde nas melhores evidências para apoiar a prática clínica ou a identificação precoce de casos graves ou manejo clínico de pacientes ventilados.
“O SUS é muito importante, os profissionais de saúde deram e continuam dando o máximo, mas o sistema não aguentou a sobrecarga. Por isso, temos que dimuinuir urgentemente a transmissão dos casos de Covid-19 fora dos hospitais”, diz Ranzani.
Os pesquisadores devem continuar as análises da mortalidade dos pacientes nesta segunda onda da pandemia. Vão avaliar, por exemplo, o impacto da expansão dos leitos emergenciais, da sobrecarga do sistema de saúde na região Sul e das novas variantes de coronavírus que já circulam no país.
Intensivistas relatam escassez de profissionais
Um outro estudo conduzido pela Amib (Associação de Medicina Intensiva Brasileira) com 999 intensivistas de todo o país mostra que a maior escassez de profissionais também foi observada no Norte e no Nordeste.
Metade dos médicos intensivistas e dos enfermeiros relatou falta de pessoal. “A saída para a escassez foi a contratação de profissionais não intensivistas ou profissionais que passaram a cuidar de mais de dez pacientes durante o plantão, sendo que dez é o máximo recomendado”, diz Suzana Lobo, presidente da Amib.
Segundo ela, a pesquisa também mostrou que essa situação está relacionada de forma significativa com o “burnout” do profissional. “Um número insuficiente de intensivistas também foi um indicador de má comunicação com familiares além de outros indicadores de boas práticas em UTI.”
A Amib, em parceria com a Abramed (Associação Brasileira de Medicina de Emergência), tem recomendado aos gestores de saúde que priorizem a vacinação dos profissionais especializados, capacitados, treinados e qualificados na assistência de tratamento intensivo.
“Esse capital humano é escasso e qualquer afastamento sobrecarrega muito os remanescentes. Essas ocorrências fazem com que a equipe tenha que frequentemente realizar longas jornadas de trabalho. Se essa estratégia for mantida, de forma contínua, implicará em riscos para a segurança dos pacientes e risco de exaustão e doenças ocupacionais para a equipe assistencial”, diz a nota.
A pandemia também vem causando impactos negativos em pacientes críticos com outras doenças, que sofrem com a sobrecarga do sistema de saúde, segundo Suzana.
“A taxa de mortalidade vinha caindo nas UTIs privadas e na públicas. Nossa força-tarefa conseguiu evitar um colapso da Covid, mas não assistiu de forma adequada os outros pacientes. Neste ano, a gente não pode deixar isso acontecer.”