Vítima identificada como Carlos Eduardo tinha tuberculose. Morte ocorreu na sexta-feira (27), em Ipanema, na Zona Sul do Rio
Morador de rua que morreu em padaria queria ajuda para chamar Samu, dizem testemunhas (Foto: Blog Joaquim Ferreira dos Santos)
Sexta-feira (27), 7h20. Um homem tenta pedir ajuda e entra na Confeitaria e Lanchonete Ipanema, na esquina entre as ruas Joana Angélica e Visconde de Pirajá, Zona Sul do Rio. Morador em situação de rua há pelo menos quatro anos, Carlos Eduardo Pires de Magalhães, de 40 anos, tinha tuberculose em estágio bastante avançado. Naquele dia, ele pedia socorro na esperança de que alguém o ouvisse e ligasse para o Samu. Infelizmente a assistência que tanto precisava não veio e ele morreu na manhã daquele 27. O homem teve o corpo coberto com um plástico preto por cerca de duas horas, enquanto pessoas tomavam café da manhã a dois metros, até ser recolhido pela Defesa Civil. Carlos Eduardo passou boa parte da vida invisível aos olhos da população, nas calçadas, e morreu da mesma forma.
— Eu cheguei aqui exatamente na hora em que ele caiu, morto, dentro da padaria. Ele estava com a camisa ensanguentada, de tanto tossir e cuspir sangue. Mas, como sempre acontece, as pessoas não ouvem os moradores de rua e só oferecem a eles o desprezo. Ele não conseguiu ajuda, isso tudo é muito triste — lamenta o jornaleiro Tarcísio Filho, de 22 anos, dono de uma banca na Praça Nossa Senhora da Paz.
Nas ruas, os únicos companheiros fiéis de Carlos Eduardo eram dois vira-latas. Mas como a sua doença já estava avançada, os dois acabaram sendo adotados por uma moradora do bairro dias antes da morte. Foi o próprio Carlos Eduardo quem pediu para que ela levasse os animais no dia em que ele foi internado pela última vez, dia 25. Na madrugada de sexta-feira, Carlos Eduardo teria passado todo o tempo usando drogas, segundo relatos de pessoas que o conheciam.
Trabalhando na região há 26 anos como operada de vagas, Rita de Cássia Diniz, de 52 anos, só guarda boas lembranças de Carlos Eduardo. Segundo ela, brigas de família por conta da dependência química o levaram às ruas. A vítima era usuária de crack mas não tinha um comportamento agressivo e nem cometia furtos na região, pelo contrário, era querido por todos aqueles que o conheciam.
— Ele vivia brincando com a gente, rindo, não fazia mal a ninguém. Era inteligente, do bem. Falava super bem, era culto. Uma moradora da região pagava duas refeições por dia para ele, que eram entregues aqui. Quando o tratavam mal ou o ignoravam, ele fazia um discurso de respeito ao próximo. Sentíamos que ele sabia o que estava falando.
Rita de Cássia lembra ainda que parentes tentaram por várias vezes levá-lo de volta para casa, sem sucesso. Na praça, ninguémm soube afirmar em qual bairro Carlos Eduardo morava antes de ir para a rua, quando trabalhou como auxiliar de serviços gerais e ajudante de obra.
— Ele tinha um celular para conversar com a mãe. A família tentou levá-lo embora, mas ele não quis. O vício sempre falou mais alto. Em casa, ele não poderia ter a droga — comenta a operadora de vagas.
Um dos últimos momentos — registrado em um vídeo — foi um banho improvisado que operadores de vaga e outros trabalhadores da região organizaram, no fim de outubro. Segundo o próprio Carlos Eduardo, ele estaria há quatro anos sem tomar banho, o que o envergonhava.
— Era mais uma vida sofrida. Ele tinha o vício dele, mas era uma pessoa do bem. Ele me contou sobre o banho e me pediu ajuda para que pudesse se lavar direito. Com um amigo, organizamos e demos esse banho a ele. Chorei demais (quando soube da morte), fiquei muito triste. O tempo de convívio na praça acaba virando um vínculo muito forte. Que Deus dê a ele um bom lugar — conta um operador de vagas amigo de Carlos Eduardo que não quis ser identificado.
Segundo o Corpo de Bombeiros, o corpo da vítima foi retirado por um carro da Defesa Civil e levado para um hospital da rede pública. O chamado foi às 8h48, quase duas horas depois do homem ter caído no chão. Testemunhas laertam, no entanto, que o corpo levou cerca de quatro horas para deixar o local. Carlos Eduardo estava sem os documentos. Já a Polícia Militar não foi chamada para a ocorrência, segundo o comando do 23º BPM (Leblon). Segundo informações da Polícia Civil, o corpo não chegou a ser encaminhado para o IML.
Carlos Eduardo era acompanhado há cinco meses pela Fundação Leão XIII que atua no Projeto de Atenção Socioassistencial às Pessoas em Situação de Rua. Ao longo desse tempo, houve encaminhamentos para atendimento em unidades de saúde e acesso a medicamentos para tratar da doença. A presidente da instituição, Andréa Baptista, explica que a proposta é ressignificar a assistência a essa população.
— É uma iniciativa de trabalho humanizado, em parceria com a Uerj, que nos demanda investir na relação com os atores e equipamentos da assistência social e na qualificação das nossas equipes no sentido de ressignificar um dos nossos principais objetos de intervenção, que é o atendimento às pessoas em situação de maior vulnerabilidade.
As equipes que atendiam Carlos Eduardo contam que a relação entre eles era de muita proximidade. Segundo os técnicos, ele era sempre muito educado e nunca deixou de agradecer pelo atendimento, que ele entendia como um “carinho especial”. Carlos Eduardo não tinha acesso a nenhum benefício e viva do que recebia de doações. Ele chegou a dar entrada na segunda via da certidão de nascimento, na Fundação Leão XIII, mas não deu tempo do documento ficar pronto.
O fato de o estabelecimento comercial ter permanecido aberto enquanto o corpo não era recolhido gerou espanto e revolta em quem estava no local e também em internautas nas redes sociais. Entre eles, o jornalista Joaquim Ferreira dos Santos, que externou a indignação em uma crônica publicada no jornal O GLOBO, no dia 29.
“A morte é o novo banal. A prova é que ela agora estava jogada, também sem escândalo, entre os bolos e os sorvetes na padaria do quarteirão. O homem morto no chão da padaria era o mesmo que todo dia entrava para pedir que lhe pagassem café com pão e manteiga”.
Além de cobrir o cadáver com um plástico preto, o jornalista contou que a padaria montou um cercadinho de cadeiras para mantê-lo afastado dos clientes. Um deles teria pedido que o local fosse fechado, argumentando ser uma questão “sanitária e humanitária”. O responsável pela loja não atendeu a sua demanda. “Ninguém teve humanidade quando ele estava jogado na rua. Agora que morreu jogado na minha padaria querem que eu tenha humanidade”, disse.
— A foto mostra as pessoas se alimentando enquanto o corpo estava ali. A sensação é de perplexidade por ver como as pessoas se comprotam de forma tão indiferente à morte e à finitude da vida. Estamos vivendo tempos onde as diferenças não são respeitadas pelo outro — diz o dentista Rafael Hinds, de 48 anos, que passava no local e fez o registro da cena que viralizou rapidamente nas redes sociais.
Segundo a Secretaria municipal de Assistência Social e Direitos Humanos do Rio, o Censo de População em Situação de Rua, realizado em outubro numa parceria com o Instituto Pereira Passos (IPP), terá a divulgação dos resultados da pesquisa na primeira quinzena de dezembro. O trabalho foi anunciado pelo prefeito Marcelo Crivella, em outubro. O último censo, de 2018, gerou polêmica ao apontar um número populacional de 4.628 pessoas, enquanto um estudo de dois anos antes chegara à quantidade de 14.279. Já a Defensoria Pública dispões de uma estimativa de 17 mil pessoas vivendo nessa situação, em março, antes da pandemia de Covid-19.