Caso aconteceu na cidade de Mossoró (RN); defesa do pastor nega acusações
Paula (nome fictício) tinha 12 anos quando, ainda na 4ª série, teria passado a frequentar a casa da professora com uma missão: olhar os filhos da mulher, no horário oposto às aulas.
As duas viviam na mesma rua. A menina, que se encontrava em condições de vulnerabilidade onde morava, aceitou aos 15 anos um novo convite: mudou-se de vez para “ajudar no cuidado com as crianças e nos trabalhos domésticos”.
O cenário era Mossoró, segunda maior cidade do Rio Grande do Norte. E ali, cerca de 32 anos atrás, teria início uma história enquadrada hoje pelo Ministério Público do Trabalho e pelo Ministério do Trabalho e da Previdência como “análoga à escravidão “, com relatos que também apontam para uma década de possíveis abusos sexuais.
A suspeita de violência pesa contra o marido da professora, o pastor da Assembleia de Deus, Geraldo Braga da Cunha. Procurado pela reportagem, o escritório de advocacia que representa ele e à família negou as acusações.
Revelado nesta terça (1º) pelo colunista do UOL, Leonardo Sakamoto, o caso foi confirmado à reportagem por autoridades que participaram da operação. A ação ocorreu na semana passada e ganhou repercussão nacional nesta terça (2).
A denúncia chegou anônima ao Instituto Trabalho Digno por meio do perfil do Instagram @trabalhoescravo, e foi encaminhada às autoridades.
Ministério do Trabalho, Ministério Público do Trabalho, Defensoria Pública da União e agentes da Polícia Federal bateram à porta da casa na última quarta (26). Um dia antes, haviam resgatado outra mulher em Natal em condições que também são alvo de investigação.
Os casos são os primeiros apontados como análogos à escravidão envolvendo trabalho doméstico, em 2022, no Brasil. Também foram os primeiros do tipo até hoje no Rio Grande do Norte, segundo Maurício Krepsky, chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo, do Ministério do Trabalho e Previdência.
Dados do ministério mostram que, entre 2017 e 2021, 38 mulheres descritas como empregadas domésticas foram resgatadas no país, em operações semelhantes. Em alguns desses casos, também havia indícios de abuso sexual –”um indicador gravíssimo de exploração”, nas palavras do auditor.
Segundo ele, “há muitos casos de trabalho doméstico urbano que começam com a história de ‘pegamos para criar’ e em que a pessoa permanece explorada por décadas”.
Na casa onde passou parte da adolescência e virou adulta, em Mossoró, Paula chegou primeiro para brincar, conta a procuradora do Ministério Público do Trabalho, Cecília Amália Cunha Santos. “E aí ela foi ficando, passou a dormir e a ser responsável por todas as tarefas da casa. As irmãs dela falam que o aliciamento ocorreu quando tinha 12 anos”, disse à reportagem.
“A dona da casa, mulher do pastor, viu que ela vivia em situação de vulnerabilidade e levou ela para casa no início da adolescência. A professora não colocou a menina para estudar. Disse que ela não tinha tino para os estudos, mas os filhos dela [da professora] todos estudaram e estão hoje encaminhados na vida”, afirmou.
Paula interrompeu os estudos e durante 32 anos, segundo as autoridades, trabalhou na casa sem qualquer direito trabalhista. “A indignidade” no caso, disse Cecília, não estava no lugar onde dormia ou nas roupas que vestia, que não estavam sujos ou desgastados.
“A indignidade estava no trabalho sem remuneração, sem folgas, em não poder ficar com a família aos finais de semana, em ter que estar à disposição de manhã, de tarde e de noite, em nunca ter tido férias, em não poder ter estudado e nos abusos que sofreu”, ressaltou a procuradora.
A situação em que tanto ela, quanto a outra mulher resgatada, foram encontradas, acrescentou, foi de dependência financeira e emocional das famílias que as abrigavam.
Na história descoberta em Natal, auditoras-fiscais do Trabalho constataram que a empregada doméstica trabalhava há cinco anos na residência, de segunda a domingo, ficando à disposição da empregadora 24 horas por dia e descansando apenas a cada 15 dias.
Segundo informações oficiais divulgadas sobre a operação, ela dormia em um colchão no chão, no quarto da empregadora. Não tinha registro na carteira de trabalho, recebia R$ 500 por mês e nunca teve o FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço) recolhido. “Todos os seus pertences ficavam dentro de uma mochila no chão do closet”, detalha nota. Segundo a procuradora do MPT, ela também sofria maus tratos e era ameaçada.
Hoje tem 52 anos. Teria sido levada no início da adolescência, como Paula, para viver com outra família, que cinco anos atrás “a repassou” para a casa onde viveu até a data do resgate.
“A trabalhadora fica numa situação de muita desorientação quando é retirada do ambiente de exploração. Ela está ali desde criança, foi socializada naquela família, perdeu as etapas de socialização que todos os adolescentes passam, de namorar, estudar, casar, ter filhos, se profissionalizar, arrumar um emprego. Nada disso, do desenvolvimento da personalidade, elas passaram, então ficam muito assustadas, porque a referência de ‘afeto’ que elas têm são essas famílias. Elas não se veem como trabalhadoras, trabalhando gratuitamente”, comentou a procuradora.
No caso de Paula, a situação acabou normalizada na casa onde vivia, disse ainda à reportagem. “Eles não a viam como empregada. Viam como uma parte da família, uma parte menos favorecida da família. Se veem nessa condição como se estivessem prestando um favor.”
Os abusos que relatou eram tratados pela família do patrão como “um caso” extraconjugal. Mas não era assim que ela via, segundo a procuradora. A mulher tem hoje 43 anos. Segundo Cecília, é analfabeta funcional. Só sabe assinar o nome.
E teria sofrido abusos dos 30 aos 40 anos. Não denunciou “por medo e vergonha”.
As duas mulheres estão agora com familiares. “Abaladas”, segundo a procuradora, não poderiam conceder entrevista. “Essas mulheres precisam de acompanhamento psicológico para se reconstruir enquanto seres humanos. Para entender o seu papel dentro daquela família, que não era de uma pessoa que estava ali para ajudar, porque gostava. Era o papel de uma trabalhadora que estava ali trabalhando e merecia receber por esse trabalho”, disse Cecília.
“Então ressignificar essa experiência para elas é muito importante e é um processo que vai durar muito tempo. O dano à existência dessas mulheres já é muito grande, o déficit emocional por não terem podido vivenciar todas as fases da vida.”
Pastor é afastado e defesa nega acusações
Em nota publicada, a Igreja Evangélica Assembleia de Deus em Mossoró disse que recebeu as notícias veiculadas na imprensa com surpresa e que o pastor foi afastado preventivamente de suas funções eclesiásticas.
“A instituição determinou, através da sua Diretoria, a abertura de procedimento administrativo disciplinar, para que sejam apurados os fatos e aplicada, se for o caso, conforme as constatações do processo, as penalidades previstas no estatuto e no regimento interno da igreja”, informa o post.
A defesa do pastor, por sua vez, negou as acusações, e, em nota, chamou a história relatada pelas autoridades na operação em Mossoró de “PSEUDO caso de escravidão doméstica e abuso sexual”. Afirmou ainda que teve seus pedidos de acesso integral aos autos do procedimento negados. E não quis comentar os fatos relatados sobre a mulher do pastor nem a nota divulgada pela igreja.
Os dois casos descobertos no estado serão encaminhados à Justiça, com pedidos de salários atrasados, verbas rescisórias, de danos morais e de investigação sobre as acusações criminais. As mulheres receberão seguro-desemprego por três meses.