'Same mistake', balada de 2007, foi parar no refrão do forró 'Coração cachorro' em 2021. Editora de James Blunt confirma ao g1 que ele busca parte da autoria e negocia acordo amigável
Ávine Vinny (maior), cantor de 'Coração cachorro', e James Blunt (menor), cantor e autor de 'Same mistake', cujo refrão inspirou a melodia do forró brasileiro — Foto: Reprodução
James Blunt está reivindicando formalmente parte da autoria da música "Coração cachorro", forró lançado em 2021 que tem um refrão com a melodia de "Same mistake", balada do cantor inglês de 2007. As duas partes negociam um acordo extrajudicial de forma amigável.
A Sony Editora, que representa os direitos de James Blunt, confirmou ao g1 que o inglês e os autores brasileiros estão acertando os termos do contrato. Ele pede uma parte da autoria, cujo percentual ainda não foi acertado, e uma compensação pelos lucros anteriores da música.
A Medalha Editora, empresa cearense que cuida dos direitos dos seis autores de "Coração Cachorro" junto com a Universal Editora, confirmou ao g1 que as duas partes estão abertas a um acordo, mas que ainda não recebeu o documento formal com a proposta.
José Diamantino, advogado da Sony Editora no Brasil, disse que o empresário de James Blunt está acompanhando o acordo, que as negociações estão caminhando bem, que devem ser fechadas em breve e que não há nenhuma rixa entre as duas partes.
Neto Sales, sócio da Medalha Editora, disse ao g1 que viu de forma positiva a aproximação de James Blunt para fazer um acordo, e que outros artistas estrangeiros em casos semelhantes apenas tentam barrar a música ou a arrecadação. Ele também acha que o acordo deve sair em breve.
O refrão com cantores que imitam latidos foi assinado por seis compositores brasileiros e gravado pelos forrozeiros Ávine e Matheus Fernandes. A música a mais tocada no Brasil hoje. Mas a melodia canina é reciclada e tem uma linhagem antiga. Entenda no podcast g1 ouviu e no texto abaixo.
James Blunt postou no dia 26 de outubro um vídeo dançando a música "Coração cachorro" e dando parabéns pelo número 1 nas paradas, mas escreveu na legenda que ia "mandar os dados bancários em breve".
Ele postou o vídeo em tom de brincadeira, e até então não se sabia se ele ia realmente reivindicar a coautoria.
Os autores do forró brasileiro, até então, admitiram a inspiração, mas negaram que houvesse plágio.
Veja o vídeo abaixo e compare as três músicas. Em seguida leia a história de "Coração cachorro":
Antes de abocanhar o primeiro lugar das paradas de streaming, "Coração cachorro" foi desacreditada. "Ela sofreu chacota. Falavam: 'Você acha que o mercado vai consumir isso?'", diz Daniel. "Achavam que era bobeira, e hoje ela acordou no número 1 do Spotify", ele comemora.
Daniel Hortêncio Batista, 31 anos, era assistente de marketing em Fortaleza quando começou a compor em 2016 e virou o Daniel dos Versos. Ele já escreveu para Wesley Safadão ("Amanheceu") e Nattan com Xand Avião (o hit "Arrasta pra cima").
Em março de 2021, ele combinou um encontro para escrever com três amigos compositores da editora Jujuba, uma fábrica de hits em Fortaleza - outros dois acabaram se juntando, formando a matilha de seis. Naquela noite, eles fizeram duas músicas: "Band-Aid" (ainda não lançada) e outra que chamavam no início de "Coração acorrentado".
"Aí eu disse: 'Cara, é uma música de saudade, é coração cachorro. Como se o coração fosse ainda apaixonadão, um cachorrão, jogado aos seus pés, sofrido pela ex'. O pessoal achou boa ideia", relata Daniel. Mas eles travaram no refrão e precisavam de algo diferente.
"Não pode vir com uma frasezinha comum. A gente tem que surpreender. Aí o PG do Carmo disse: 'Pensei numa parada aqui, só que vocês não vão querer.'" Achando que ninguém ia gostar, ele soltou o latido com a melodia de "Same mistake" e "Já me acostumei" para os companheiros.
"Entrou muito bem. Porque um coração cachorro quando vê a pessoa, o que faz? Auuuu. Sofrendo. A gente se amarrou na ideia", diz Daniel.
"Tive que convencer minha equipe a gravar essa música", diz Ávine, 32 anos, nascido em Sobral, no Ceará. Ele aprendeu a cantar na igreja evangélica e depois se arriscou em barzinhos. Aos 20 anos, montou a banda Xé Pop e foi virando ídolo do forró.
Hoje em carreira solo, Ávine é contratado da Vybbe, produtora de Xand Avião. Ele tem destaque neste mercado, mas o primeiro número 1 nacional, que reforça sua agenda no Sudeste, é "Coração cachorro". Mas no começo "muita gente achava a música estranha", ele diz.
"Grande parte da minha equipe não queria que eu gravasse. Mas eu tinha certeza que ia dar certo porque é uma música que tem letra boa, romântica, e que tem um refrão no mínimo inusitado. Essa é a fórmula do que está rolando hoje", diz Ávine, que chamou Matheus Fernandes para a parceria.
O arranjo fez diferença. "A gente queria botar batidas mais eletrônicas. Meio piseiro com funk", ele define. "Cadenciamos o ritmo e colocamos alguns elementos de TikTok, do funk, que estão rolando no mercado." O plano foi certeiro: a música hoje é campeã de dancinhas no app de vídeos.
"Na hora do "auuuu", com certeza, a inspiração é no James Blunt. Só que ela é apenas uma citação. A música não é uma versão. É um jogo de melodia, de voz, do cachorro latindo. Tem todo um contexto, um significado até chegar ao "auuuu", disse Daniel dos Versos ao g1 em outubro, antes da notícia de que um acordo estava sendo negociado.
"Tanto que a melodia do começo é diferente. Você não consegue colocar uma música em cima da outra e dar um play. Elas se chocam, não são iguais. A música da Calcinha Preta, sim, é uma versão", ele compara.
"Já me acostumei" não é a única versão não autorizada feita pelo Calcinha Preta. O grupo fez diversas adaptações desse tipo, e já contou ao podcast g1 ouviu que teve problemas com direitos autorais por isso.
"Mas a gente sempre dá um jeitinho de contornar. Porque às vezes não consegue para gravar um DVD, um CD. Agora mesmo, a gente teve problema com isso porque, no DVD de 25 anos do Calcinha Preta, várias músicas não puderam entrar por causa dos direitos autorais", disse Paulinha Abelha.
"Se por acaso a gente receber uma notificação com certeza vai ajeitar da melhor maneira possível para que a música fique ainda em evidência, para que todo mundo saia ganhando. Mas acredito que não vai acontecer nada", disse Daniel em outubro.
"Se tiver que dar o crédito, nós daremos. Nós somos justos. Se chegar a esse ponto de dizer: 'o James Blunt vai entrar na composição, por causa disso, a lei diz isso, a regra autoral diz isso', se for tudo certo, obviamente teremos mais um parceiro na composição, sem problema", afirmou Daniel.
Mas, até então, ele não achava que deveria haver esse crédito. "Que fique claro, que a música não é plágio. A gente foi inclusive atrás na época de advogados. E a gente chegou à conclusão de que apenas é uma citação."
Em outubro, Ávine Vinny, que é contratado pela Sony Gravadora, disse ao g1 que a empresa já tinha acertado a questão, sem dar mais detalhes. O g1 procurou a assessoria da Sony, que disse em nome "da editora" que não considerava que houvesse plágio na música.
Mas a Sony Editora não representa os direitos editoriais de "Coração cachorro". A empresa, no seu braço de gravadora, é responsável apenas pela gravação de Ávine Vinny e Matheus Fernandes. O acordo envolve apenas os compositores das músicas, e não os intérpretes.
Dois advogados procurados pelo g1 deram opiniões diferentes sobre o caso.
Daniel Campello, da ORB Music, disse: "Eu acho que ele (James Blunt) tem toda razão, porque se trata de um uso não autorizado de um trecho da música dele. Não é uma citação, porque não existe citação em música sem crédito. Quando você faz uma citação de um trecho, tem que dar um crédito."
"Nesse caso houve um plágio clássico. É um autor tentando se passar pelo outro de forma impostora. O plagiador é um impostor. O que os brasileiros fizeram foi usar um trecho da música do James Blunt sem dar o crédito, e nesse caso constituindo claramente um plágio", concluiu Daniel.
Já o advogado Marcel Gladulich afirmou: "Na minha opinião não existe plágio no caso do 'Coração cachorro'. Isso porque a música tem uma identidade, uma individualidade diferente do 'Same mistake'. A obra não ficaria descaracterizada se fosse retirado ou alterado esse trecho. Para mim, se introduzida uma outra linha melódica, a música 'Coração cachorro' continuaria a existir".