Pele de tilápia age como um curativo para queimaduras de 2º e 3º grau e o seu uso acelera o processo de cicatrização além de diminuir a dor do paciente
Pesquisadores da Universidade Federal do Ceará se mobilizaram para ajudar as vítimas da tragédia que deixou 4 mil feridos e mais 100 mortos após uma explosão no porto de Beirute, no Líbano. Os cientistas, que desenvolvem um estudo inédito sobre uso de pele de tilápia no tratamento de queimaduras, ofereceram a doação de mais de 40 mil cm² de pele de seu estoque para o tratamento dos libaneses. A doação, no entanto, depende de tramites legais entre os dois países para a liberação do envio.
Há seis anos, o cirurgião plástico e presidente do Instituto de Apoio ao Queimado (IAQ) Edmar Maciel desenvolve técnicas de aplicação da pele do peixe em pacientes com lesões. A pele de tilápia age como um curativo para queimaduras de 2º e 3º grau e o seu uso acelera o processo de cicatrização além de diminuir a dor do paciente. Por enquanto, mais de 350 pessoas já foram beneficiadas com o procedimento no Brasil.
Quando um paciente sofre uma queimadura, é aplicada uma pomada na área atingida, que é coberta por gaze. Porém, esse curativo precisa ser refeito todos os dias para evitar infecções. “Um curativo que precisa ser trocado diariamente provoca dores no paciente e muitas vezes é necessário o uso de anestésico, o que gera um custo ainda maior ao tratamento”, explica o cirurgião.
Com a tilápia, esse processo não seria necessário, já que o seu colágeno facilita o processo de cicatrização com uma aderência completa à queimadura. Outra vantagem é que a pele de tilápia é facilmente extraída e o peixe é o principal pescado cultivado no Brasil. A pele, que geralmente é descartada na cadeia produtiva, pode ter nova utilidade.
Em entrevista a Ecoa, o pesquisador conta como surgiu a ideia de doação das peles às vítimas de Beirute e explica o por quê do procedimento ainda não estar disponível para o uso em hospitais pelo Brasil.
Edmar Maciel: Devido a essa tragédia, fomos procurados por diversas pessoas, entre colegas médicos e cirurgiões plásticos, que sabem do nosso trabalho com a pele de tilápia em queimaduras. Verificamos imediatamente nosso estoque e vimos que tínhamos a disponibilidade para doar 400 peles, o que equivale a 40 mil centímetros quadrados.
Quanto ao processo de doação, não depende de nós, e sim das autoridades brasileiras e libanesas autorizarem os trâmites burocráticos. O que podemos dizer é que nos prontificamos a doar e estamos no aguardo para que isso possa ser feito o mais rápido possível para ajudar no tratamento às vítimas.
Isso depende muito da condição do paciente, da extensão e profundidade da queimadura, da gravidade em geral. Mas podemos dizer que essa quantidade ajudaria entre 50 a 100 pessoas.
A pele da tilápia é muito mais eficiente do que um curativo feito com pomada, por exemplo. Aqui no Brasil usamos a sulfadiazina de prata, que é aplicada nas queimaduras com o uso de gazes. Esse curativo precisa ser refeito diariamente, o que provoca dores no paciente e muitas vezes é necessário o uso de anestésico, o que gera um custo ainda maior ao tratamento.
Já o “curativo”, digamos assim, com a pele de tilápia tem efeito de cicatrização mais rápido e não necessita de tantas “trocas”, já que o colágeno interage com a ferida da queimadura facilitando o processo de cicatrização. E, como a pele da tilápia adere completamente à área queimada, isso evita a contaminação externa e a perda de líquido e proteína, que desidrata o paciente. Por isso não é necessário a troca diária do curativo, o que diminui as dores e o custo do tratamento.
A pele da tilápia é usada em queimaduras a partir de segundo grau. Em casos de segundo grau superficial, ela fica até 12 dias para acelerar o processo de cicatrização. Em uma queimadura de segundo grau profundo, ela fica em torno de 18 dias. E na queimadura de terceiro grau, ela fica até que o paciente tenha pele dele disponível. Nessas queimaduras mais graves, a pele de tilápia precisa ser trocada a cada cinco a sete dias, o que já é um período menor do que se fosse utilizado um curativo com pomada, por exemplo.
Sim, no resto do mundo se usa principalmente a pele de porco, mas também tem a pele de rã e a de cachorro. Mas a mais usada no mundo é a pele de porco. Inclusive, a pele da tilápia supera essa e todas as outras em relação à quantidade de colágeno e resistência. Fora que, por ser um animal aquático, tem menos risco de transmissão de doença do que os animais terrestres.
Olha, eu não conheço nenhuma pesquisa com peixe para queimaduras no mundo e desconheço qualquer outra pesquisa da pele da tilápia que não seja a nossa.
O registro da Anvisa. E isso não depende de nós, pesquisadores. São várias etapas a serem cumpridas. O que temos que deixar claro é que o uso da pele de tilápia em queimaduras já passou por diversos estudos clínicos e tem a sua eficácia totalmente comprovada. Ela só não é comercializada. E por quê? Novamente, porque isso depende do registro na Anvisa.
Esse registro envolve várias etapas, desde a escolha da indústria que vai comercializar, às normas e critérios de produção. Quando a indústria é definida, ela envia o registro para a Anvisa, que passa por um processo burocrático, e só depois acontece a liberação. Eu diria que todo esse processo até a liberação pode levar de dois a três anos.
Em média, 20 dias. Nós recebemos a pele já retirada do peixe, da piscicultura que nos fornece. E aí começa a etapa de esterilização. Nesse momento, também é feita uma radiação por raios gama que tem como objetivo matar todos os vírus.
A pandemia de Covid-19 no Brasil atrapalhou um pouco, mas desde o começo do ano decidimos preparar um lote de duas mil peles, o que equivale a 300 mil centímetros quadrados. Essas peles serão usadas exclusivamente em casos de grandes tragédias, no Brasil e no mundo. O armazenamento desse material pode durar até dois anos, e a liberação e transporte para o envio vai depender também do órgão de cada região, ou país, que solicitar.